Rui Romano
À semelhança de muitas outras
empresas, a RTP tinha um Boletim Mensal, uma espécie de jornal, que era
distribuído por todos os funcionários e no qual muitos colaboravam com os
artigos que achassem bem. Havia uma secção de poesia, pelo que eu sempre
enviava um trabalho meu. Era de uma assiduidade total, de tal forma que quando
eu me esquecia ou não tinha tido tempo para isso, telefonavam-me dizendo que
estavam à espera do meu trabalho, como se tivesse havido um acordo. Foi assim
durante muito tempo, até que um dia, em virtude disto, recebi um telefonema da
então responsável pela Casa do Pessoal da RTP, que queria falar comigo. O
assunto era que a Empresa queria publicar um livro de um funcionário, aquando
da comemoração dos seus cinquenta anos, o que foi em 2007, e para isso eu tinha
sido escolhida.
Nunca me tinha passado pela
cabeça publicar um livro e, com toda a sinceridade, não tinha assim uma grande
vontade. Falei com o meu filho que, vendo o meu pouco entusiasmo me incentivou,
dizendo que não era nada de mais e que se calhar era uma excelente
oportunidade. E como a opinião dele tinha peso, comecei a ponderar essa
hipótese. A insistência por parte da Empresa continuou e um dia concordei,
dizendo que estava disposta a isso.
Começa então uma saga
interminável de negociações dignas de registo. É certo que era a RTP que ia
publicar, mas o livro era meu. A senhora
doutora, uma colega de muitos anos, tínhamos trabalhado juntas em 1974 quando,
depois do 25 de Abril, ambas fomos secretárias do Conselho de Administração.
Depois, o percurso dela foi um e o meu outro. Mas conhecíamo-nos muito bem,
claro está. E usando do poder que agora lhe estava atribuído, começou por
enunciar as coisas que me queria impor. Não vou pormenorizar porque não tem
muito interesse, mas fui bem clara, dizendo-lhe que o livro era meu e, portanto,
tinha que ser do meu jeito. Em todo o caso, e como era ela que mandava, fui
fazendo algumas cedências, até que chegou um ponto que para mim fazia toda a
diferença: o Prefácio. É que ela queria uma pessoa - e percebi porque queria
essa pessoa - que a mim não me agradava nem um pouco. Uma pessoa sobejamente
conhecida dos meios audiovisuais, mas por quem eu não nutria a mais pequena
simpatia e como eu, muitos outros colegas. Mas ela queria porque queria e como
eu já tinha cedido noutras coisas, achou que iria ceder ali também. Mas isso
não. Um livro meu com o prefácio dele? Jamais! Isso é que não.
Era um indivíduo
insuportável, convencido de que tinha o rei na barriga. Era só ele e mais
ninguém. Não havia nada nele que me cativasse, pelo contrário, eu queria era
ver aquela figura longe de mim. Não precisava dele para nada. Mas era uma
figura do grande público. Se o público soubesse como ele era pessoalmente,
provavelmente não tinha a fama que tinha. Mas as coisas são assim, ou seja,
nunca são aquilo que parecem. Todavia, o meu livro não teria o prefácio de
semelhante pessoa. Não havia a menor possibilidade.
Comecei então a pensar em
quem poderia ser a pessoa certa para isso. E não foi preciso muito para passar
na minha cabeça a pessoa que passou, percebendo que essa sim, era a pessoa
certa, caso ele estivesse disposto a isso. Mas se fosse esse caso, era sem
dúvida alguma a cereja em cima do bolo. Tinha todos os requisitos e encaixava
cem por cento. E apenas e somente no caso de ele não aceitar, o que poderia acontecer,
teria o trabalho de pensar noutra. Agora era entrar em contacto com ele para
lhe pôr a questão. Sendo uma pessoa tão preenchida, tão cheia de trabalho,
teria ainda assim tempo para fazer uma apreciação dos meus humildes poemas? Não
fazia a menor ideia. Mas valia a pena tentar.
Rui e eu conhecíamo-nos de
vista, sendo que eu o conhecia mais do que de vista, uma vez que ele era um
jornalista consagrado. Quem não o conhecia? Já a mim, ele apenas me conhecia de
vista e só isso. Encontrávamo-nos de vez em quando nos corredores, nos
elevadores e no parque de estacionamento. Só que eu sabia perfeitamente quem
ele era, ao passo que ele realmente só me conhecia de vista. O meu nome nem por
isso. E porque haveria? Enquanto ele era conhecido de toda a gente, já eu não.
Eu não era uma figura pública, não era ninguém, apenas uma funcionária como
qualquer outra e de áreas completamente diferentes. Portanto, ele realmente não
tinha como saber nada de mim, a não ser que perguntasse, o que não faria o
menor sentido.
Contudo, mesmo sem saber nada
de mim, assistiu ao crescimento de meu filho, porque todos os funcionários de
vez em quando eram obrigados a levar os filhos para o trabalho. Por causa das
escolas, por causa de ir ao médico, por variadíssimas razões e, portanto, se às
vezes me via sozinha, outras vezes também me via com ele e como é natural, foi
assistindo ao seu crescimento. Era mesmo a única coisa que ele sabia de mim.
Assim, e contra vontade da
senhora doutora da Casa do Pessoal, tive que tomar as minhas providências para
ter um prefácio da pessoa que me interessava e mais nada. Não dava para fazer o
que ela queria. E numa bela tarde, decidi ligar pelo telefone interno para Rui
Romano que, claro está, não sabia com quem estava a falar. Disse-lhe então que
tinha sido escolhida para a publicação de um livro de poesia e gostaria muito
que ele fizesse um prefácio para o meu livro. O Rui ouviu-me, confirmou que não
sabia quem eu era, mas que ficava muito honrado com a minha escolha,
imagine-se(!). Eu é que estava nas nuvens por ele se disponibilizar
inteiramente para isso. Naquele dia estava de saída, por isso pediu-me que
enviasse o trabalho pelo correio interno. Ele ia ver com toda a atenção e
depois me diria alguma coisa. Certo, certíssimo. As coisas estavam no bom
caminho. Agradeci mil vezes e as coisas ficaram assim. Despachei o dossier pelo
correio interno e agora era esperar a decisão dele. Talvez ele achasse que não
tinha interesse, sei lá, nunca se sabe. Estava feito, era esperar e depois se
veria.
Um certo dia, talvez uma
semana depois, o meu telefone interno tocou. Era ele em pessoa, Rui Romano. Eu
estava eufórica, tremendo por todos os lados. E depois de nos cumprimentarmos,
Rui imediatamente se apressou a dar-me os parabéns, dizendo que muito tinha
apreciado o trabalho e que tínhamos que nos encontrar. Mais uma vez ele estava
de saída, mas queria que nos encontrássemos no dia seguinte, se me fosse
possível, em que teria um tempinho não só para me conhecer, como também para me
falar exatamente das coisas e porque já tinha o prefácio feito. Uau! Melhor era
impossível. Ele só não sabia ainda quem eu era. E essa parte eu tinha imensa
curiosidade, porque pensei que ele nunca na vida suspeitaria de mim, como
depois foi confirmado. E o dia seguinte chegou. Na hora certa, peguei no carro
rumo à Faculdade, onde ele estaria a fazer uma conferência.
Ao chegar, a conferência
ainda não tinha terminado e para não ficar à porta, decidi entrar. Eram umas
portas grandes de vidro, através das quais se podia ver um enorme anfiteatro
completamente cheio de jovens e no palco, três entidades que discursavam, sendo
que uma delas era o Rui. Exatamente no momento em que decido entrar, o Rui
estava de pé com o microfone na mão. À minha entrada, embora discreta e sem
fazer o menor ruído, era impossível ele não me ver. Entrei, sempre olhando para
ele e fiquei de pé, até porque não havia lugares, encostadinha à parede, sempre
olhando para ele. Ao ver-me entrar, percebi imediatamente que ficou
ligeiramente bloqueado, contudo, como um profissional altamente experiente,
logo se recompôs e sem tirar os olhos de mim, percebi que me reconheceu, mas
completamente fora de contexto, ou seja, ele me reconheceu da televisão e não
dali, percebendo logo o motivo da minha entrada intempestiva naquela hora e
naquele espaço, que não tinha nada a ver comigo. Era eu, a tal, a desconhecida,
que afinal ele sabia quem era, só não ligava o nome à pessoa. E senti-lhe um
certo alívio, um certo prazer, porque a sua mensagem telepática era de uma
energia muito leve, muito suave, muito conectada. Foi muito bom.
A conferência acabou, todos
começaram a sair e no meio daquela multidão apareceu ele vindo na minha direção,
já cá fora. Chegou ao pé de mim e desabafou o que lhe ia na alma. E como foi
bom! Rui estava espantado, admirado, mas ao mesmo tempo encantado. Confessou
que nunca imaginara que era eu a pessoa. Tinha adorado cada poema meu, disse
coisas lindas, fez uma apreciação da minha pessoa em função do que tinha lido,
absolutamente deslumbrante. Apresentou-me a colegas que estavam com ele, duma
maneira assombrosa, enfim… eu não sabia o que fazer nem dizer. Tudo aquilo para
mim era uma grande novidade. Nunca ninguém se referira a mim daquele jeito, com
tantos elogios, que foram absolutamente sinceros da parte dele, o que era
realmente o mais importante. E finalmente, sentados a uma mesa de café, pude
ler o prefácio que já estava feito e que me deixou sem palavras.
Eu estava certa, a nossa
conexão era perfeita. Agora não havia mais hipótese de não ter o prefácio de
quem eu não queria. Ali estava ele, feito para mim, pela única pessoa que
realmente me interessava. Se antes deste episódio já existia uma simpatia
mútua, a partir desse dia a nossa amizade tornou-se em algo muito bonito. O Rui
era uma pessoa extraordinária. Não tinha defeitos. Era um senhor. Por essa
altura Alice Cruz, sua companheira, já tinha sido vítima do acidente que lhe
tirou a vida. O Rui que eu conheci foi sempre uma pessoa extraordinária, em
todos os aspetos, em todos os sentidos. A nossa amizade era mesmo muito bonita
e sincera.
E com o prefácio comigo,
feliz da vida, lá fui eu para as negociações da edição do meu livro em que a
RTP estava interessada. Mas, uma vez mais, a minha querida colega, a senhora
doutora, não estava de acordo. Continuava a dizer que não queria o Rui Romano.
A questão é que àquela altura, Rui Romano já era “persona non grata”,
coisa em que nem pensei, nem me interessava. Os jogos de uns e de outros não
tinham que me afetar nem tão pouco me interessar. O meu livro era uma coisa, os
problemas internos da RTP eram outra. Mas isso era o que eu pensava. Porque, na
verdade, percebi que as coisas estavam todas misturadas. Misturadas e
complicadas. É que, além do problema do prefácio, surgiu ainda mais uma
questão. A senhora doutora agora achava que eu deveria contribuir com alguma
coisa, ainda que muito pouco, propondo-me uma quantia perfeitamente irrisória,
que não fazia o menor sentido. Se eu quisesse mesmo publicar, se fosse do meu
interesse, eu daria muito mais do que ela me estava a pedir. A importância que
ela propunha era tão ridícula, que concluí que o problema não podia ser esse.
Além de que o interesse não era meu. E eu tinha deixado isso bem claro, tanto
que levei tempo para decidir. Agora as coisas estavam a ser postas de forma que
parecia que era eu que tinha pedido alguma coisa. Mas nunca! Jamais. Eu tinha
sido chamada para aquilo. Não me tinha oferecido nem pedido nada a ninguém.
Portanto, a “negociação” acabava ali, naquele momento e ponto final mesmo. Sem
chance. Eu não queria mais, como nunca quis. E não houve livro para ninguém.
Estou arrependida disso? Nem
um pouco. Ganhei um amigo muito especial, muito querido, por quem sempre nutri
a mais profunda admiração e mais tarde o seu enorme carinho, bem como a sua
atenção, que para mim foi o mais importante. Rui lamentou o sucedido e queria
ser ele a publicar o livro, mas achei que não. Não queria misturar as coisas.
Aí, não sei se fiz bem ou não. Porque, muito pouco tempo depois, uma estrela
partia desta vida, provavelmente para um lugar bem melhor do que a terra,
deixando para trás as confusões, as tretas e todas as porcarias por onde se
embrenham os humanos, apenas porque não são capazes de enxergar uma luz maior e
reconhecer o que é bom e o que é mau. É um caminho que se fecha e nos torna
prisioneiros, sem a menor possibilidade de libertação. E assim, as coisas são
como são. Mas ficou a eterna saudade de um encontro que deu um destaque
especial à minha vida e que nunca esquecerei: Rui Romano.
(2022)
Obrigada meu amigo
Pela Verdade,
pela amizade
Pela postura correta da tua ingenuidade
Pelo alerta
contra o erro, contra o mal
Pela composição da Suprema Felicidade.