30/04/2009


        Solstício


Quero ver o dia nascer

a madrugada acordar

um sol morno a rebentar

sobre as águas frescas do mar

 

Quero ver quando começa o raiar

Quando termina o esmorecer

 

           dançar

            e navegar

num sonho tranquilo

fora da fantasia

bem longe da realidade

 

                          passear

            e cantar

uma canção sem estilo

com as cores da nostalgia

e a ternura duma saudade

 

             nadar

            e entrar

no túnel da ironia

no embalar da simplicidade

  concreta, nula e vazia.







20.06.97


PREFÁCIO

A surpreendente e fascinante inspiração poética de Luisa Lícias deixou-nos a balsâmica sensação de que, entre tantos poetas de língua portuguesa, alguns há de singular extracção. 

Cada um dos poemas que nos foi dado “sentir” revela uma inspiração ampla, sóbria, quase sempre encerrando múltiplas significações, perfeito equilíbrio entre a ideia “vivida” e sua explosão interiorizada apelando ao encontro de elevados patamares, tanto metafísicos como sensoriais. 

Luisa Lícias é possuidora de particulares dons estéticos, caracterizados pela rara capacidade de dar uniformidade às suas circunstâncias e ao seu tão substantivo imaginário eivado de “mosaicos” onde as Côres são gritos de alma, e perturbantes cintilações de uma vincada personalidade para a qual contribui a sólida inteligência de quem, escrevendo por impulso, sabe o valor conceptual e ético do que nos propõe, em linguagem profundamente verdadeira - porque profundamente poética.

A poesia de Luisa Lícias é, muito rica de temas e ritmos, de simbólicas conotações e denotações, o hálito de contínua criatividade a contrapor-se ao tecido, tantas vezes cruel, da(s) experiência(s), oscilando entre polaridades de claros/escuros, jogando oposições de memória e angústia, de solarenta esperança ou de longínquas e nostálgicas reminiscências, abrangendo paisagens com pessoas dentro.

A quem se dirige o poeta quando escreve “... quando partires na tua montada/galopando rumo ao vento/sem parar na curva da estrada/dividindo ao meio o “tempo”/um lado é Teu/o outro é Meu ...” a que logo se segue “... Quando desceres pela encosta florida/num campo fresco, cheirando a jasmim/abranda a fúria da tua corrida/respira fundo e entra. É o Meu jardim/Metade é Meu/metade é Teu ...”

Dirige-se Luisa Lícias, a alguém especialmente escolhido como seu par “de simetria e sintonia” sem que, da fusão de sentimentos e sensações saiam anuladas a vontade livre, a liberdade liberta, os caminhos abertos em permanência - ou o poeta expressa, apenas, uma mágica e mítica fórmula no sonho perene do encontro com o “fugidio e efémero ideal” que Cervantes tão admiravelmente corporizou nesse comovente D. Quixote de La Mancha”?...

São muitos os poemas que a “Mulher” Luisa Lícias constituiu em luminoso painel de variegados desenhos verbais onde a relação sintagmática se assume, quantas vezes, em “um nunca mais acabar de espanto e de sonho”.

Nesta poesia, a demiúrgica inserção dos múltiplos e impressivos “flashes” de uma vida marcada por universos naturalmente femininos, aparece-nos como “criação do Outro e para o Outro”.

Nesse mítico “espaço da Mulher” encontramos a “quente lucidez de uma planície”, o “ondulante, oceânico sexo em busca do Amor”, à Ovídeo ou Omar Khayam” a “superfície inteira banhada pelos ventos de aurora e pelas “tépidas chuvas dum certo e cálido outono”.

Velas vermelhas, “filhas do sol, refúgio do inverno”, os “olhos cheios de brilho que, no mar, vinham na vaga e se espelhavam na onda da maresia”; a liberdade livre de ser dona da lua e com ela dançar, com ela adormecer”; “os olhos das crianças louras, os olhos das crianças negras, o amor, a dor...; e, no desfolhar de um livro de versos vivos e vivificantes onde difícil é determo-nos num poema solitário, essa tão tocante homenagem a um admirável ser que, poeticamente, pela vida passou, da vida se despediu, sempre igual a si próprio, evanescente, apelando à compreensão, ao Amor do Outro - Irene Urbano de seu nome, “duas esmeraldas no rosto ferido/diamantes esquecidos no olhar perdido/dona da fantasia/flor rebelde tresmalhada/sempre só na encruzilhada/uma vida, uma sangria/de alma nua, leve e rouca/a Rainha da poesia/louca/tão eternamente louca!

Por fim e para qualificar a poesia de Luisa Lícias, com que alegria e humano entendimento me recordo do meu tão próximo Paul Valéry “... a poesia tende a constituir o discurso de um ser mais puro, mais potente e mais profundo nos seus pensamentos, mais intenso na sua vida, mais elegante e mais feliz na sua fala do que qualquer pessoa real ...”

Rui Romano


Rui Romano

 

À semelhança de muitas outras empresas, a RTP tinha um Boletim Mensal, uma espécie de jornal, que era distribuído por todos os funcionários e no qual muitos colaboravam com os artigos que achassem bem. Havia uma secção de poesia, pelo que eu sempre enviava um trabalho meu. Era de uma assiduidade total, de tal forma que quando eu me esquecia ou não tinha tido tempo para isso, telefonavam-me dizendo que estavam à espera do meu trabalho, como se tivesse havido um acordo. Foi assim durante muito tempo, até que um dia, em virtude disto, recebi um telefonema da então responsável pela Casa do Pessoal da RTP, que queria falar comigo. O assunto era que a Empresa queria publicar um livro de um funcionário, aquando da comemoração dos seus cinquenta anos, o que foi em 2007, e para isso eu tinha sido escolhida.

Nunca me tinha passado pela cabeça publicar um livro e, com toda a sinceridade, não tinha assim uma grande vontade. Falei com o meu filho que, vendo o meu pouco entusiasmo me incentivou, dizendo que não era nada de mais e que se calhar era uma excelente oportunidade. E como a opinião dele tinha peso, comecei a ponderar essa hipótese. A insistência por parte da Empresa continuou e um dia concordei, dizendo que estava disposta a isso.

Começa então uma saga interminável de negociações dignas de registo. É certo que era a RTP que ia publicar, mas o livro era meu.  A senhora doutora, uma colega de muitos anos, tínhamos trabalhado juntas em 1974 quando, depois do 25 de Abril, ambas fomos secretárias do Conselho de Administração. Depois, o percurso dela foi um e o meu outro. Mas conhecíamo-nos muito bem, claro está. E usando do poder que agora lhe estava atribuído, começou por enunciar as coisas que me queria impor. Não vou pormenorizar porque não tem muito interesse, mas fui bem clara, dizendo-lhe que o livro era meu e, portanto, tinha que ser do meu jeito. Em todo o caso, e como era ela que mandava, fui fazendo algumas cedências, até que chegou um ponto que para mim fazia toda a diferença: o Prefácio. É que ela queria uma pessoa - e percebi porque queria essa pessoa - que a mim não me agradava nem um pouco. Uma pessoa sobejamente conhecida dos meios audiovisuais, mas por quem eu não nutria a mais pequena simpatia e como eu, muitos outros colegas. Mas ela queria porque queria e como eu já tinha cedido noutras coisas, achou que iria ceder ali também. Mas isso não. Um livro meu com o prefácio dele? Jamais! Isso é que não.

Era um indivíduo insuportável, convencido de que tinha o rei na barriga. Era só ele e mais ninguém. Não havia nada nele que me cativasse, pelo contrário, eu queria era ver aquela figura longe de mim. Não precisava dele para nada. Mas era uma figura do grande público. Se o público soubesse como ele era pessoalmente, provavelmente não tinha a fama que tinha. Mas as coisas são assim, ou seja, nunca são aquilo que parecem. Todavia, o meu livro não teria o prefácio de semelhante pessoa. Não havia a menor possibilidade.

Comecei então a pensar em quem poderia ser a pessoa certa para isso. E não foi preciso muito para passar na minha cabeça a pessoa que passou, percebendo que essa sim, era a pessoa certa, caso ele estivesse disposto a isso. Mas se fosse esse caso, era sem dúvida alguma a cereja em cima do bolo. Tinha todos os requisitos e encaixava cem por cento. E apenas e somente no caso de ele não aceitar, o que poderia acontecer, teria o trabalho de pensar noutra. Agora era entrar em contacto com ele para lhe pôr a questão. Sendo uma pessoa tão preenchida, tão cheia de trabalho, teria ainda assim tempo para fazer uma apreciação dos meus humildes poemas? Não fazia a menor ideia. Mas valia a pena tentar.

Rui e eu conhecíamo-nos de vista, sendo que eu o conhecia mais do que de vista, uma vez que ele era um jornalista consagrado. Quem não o conhecia? Já a mim, ele apenas me conhecia de vista e só isso. Encontrávamo-nos de vez em quando nos corredores, nos elevadores e no parque de estacionamento. Só que eu sabia perfeitamente quem ele era, ao passo que ele realmente só me conhecia de vista. O meu nome nem por isso. E porque haveria? Enquanto ele era conhecido de toda a gente, já eu não. Eu não era uma figura pública, não era ninguém, apenas uma funcionária como qualquer outra e de áreas completamente diferentes. Portanto, ele realmente não tinha como saber nada de mim, a não ser que perguntasse, o que não faria o menor sentido.

Contudo, mesmo sem saber nada de mim, assistiu ao crescimento de meu filho, porque todos os funcionários de vez em quando eram obrigados a levar os filhos para o trabalho. Por causa das escolas, por causa de ir ao médico, por variadíssimas razões e, portanto, se às vezes me via sozinha, outras vezes também me via com ele e como é natural, foi assistindo ao seu crescimento. Era mesmo a única coisa que ele sabia de mim.

Assim, e contra vontade da senhora doutora da Casa do Pessoal, tive que tomar as minhas providências para ter um prefácio da pessoa que me interessava e mais nada. Não dava para fazer o que ela queria. E numa bela tarde, decidi ligar pelo telefone interno para Rui Romano que, claro está, não sabia com quem estava a falar. Disse-lhe então que tinha sido escolhida para a publicação de um livro de poesia e gostaria muito que ele fizesse um prefácio para o meu livro. O Rui ouviu-me, confirmou que não sabia quem eu era, mas que ficava muito honrado com a minha escolha, imagine-se(!). Eu é que estava nas nuvens por ele se disponibilizar inteiramente para isso. Naquele dia estava de saída, por isso pediu-me que enviasse o trabalho pelo correio interno. Ele ia ver com toda a atenção e depois me diria alguma coisa. Certo, certíssimo. As coisas estavam no bom caminho. Agradeci mil vezes e as coisas ficaram assim. Despachei o dossier pelo correio interno e agora era esperar a decisão dele. Talvez ele achasse que não tinha interesse, sei lá, nunca se sabe. Estava feito, era esperar e depois se veria.

Um certo dia, talvez uma semana depois, o meu telefone interno tocou. Era ele em pessoa, Rui Romano. Eu estava eufórica, tremendo por todos os lados. E depois de nos cumprimentarmos, Rui imediatamente se apressou a dar-me os parabéns, dizendo que muito tinha apreciado o trabalho e que tínhamos que nos encontrar. Mais uma vez ele estava de saída, mas queria que nos encontrássemos no dia seguinte, se me fosse possível, em que teria um tempinho não só para me conhecer, como também para me falar exatamente das coisas e porque já tinha o prefácio feito. Uau! Melhor era impossível. Ele só não sabia ainda quem eu era. E essa parte eu tinha imensa curiosidade, porque pensei que ele nunca na vida suspeitaria de mim, como depois foi confirmado. E o dia seguinte chegou. Na hora certa, peguei no carro rumo à Faculdade, onde ele estaria a fazer uma conferência.

Ao chegar, a conferência ainda não tinha terminado e para não ficar à porta, decidi entrar. Eram umas portas grandes de vidro, através das quais se podia ver um enorme anfiteatro completamente cheio de jovens e no palco, três entidades que discursavam, sendo que uma delas era o Rui. Exatamente no momento em que decido entrar, o Rui estava de pé com o microfone na mão. À minha entrada, embora discreta e sem fazer o menor ruído, era impossível ele não me ver. Entrei, sempre olhando para ele e fiquei de pé, até porque não havia lugares, encostadinha à parede, sempre olhando para ele. Ao ver-me entrar, percebi imediatamente que ficou ligeiramente bloqueado, contudo, como um profissional altamente experiente, logo se recompôs e sem tirar os olhos de mim, percebi que me reconheceu, mas completamente fora de contexto, ou seja, ele me reconheceu da televisão e não dali, percebendo logo o motivo da minha entrada intempestiva naquela hora e naquele espaço, que não tinha nada a ver comigo. Era eu, a tal, a desconhecida, que afinal ele sabia quem era, só não ligava o nome à pessoa. E senti-lhe um certo alívio, um certo prazer, porque a sua mensagem telepática era de uma energia muito leve, muito suave, muito conectada. Foi muito bom.

A conferência acabou, todos começaram a sair e no meio daquela multidão apareceu ele vindo na minha direção, já cá fora. Chegou ao pé de mim e desabafou o que lhe ia na alma. E como foi bom! Rui estava espantado, admirado, mas ao mesmo tempo encantado. Confessou que nunca imaginara que era eu a pessoa. Tinha adorado cada poema meu, disse coisas lindas, fez uma apreciação da minha pessoa em função do que tinha lido, absolutamente deslumbrante. Apresentou-me a colegas que estavam com ele, duma maneira assombrosa, enfim… eu não sabia o que fazer nem dizer. Tudo aquilo para mim era uma grande novidade. Nunca ninguém se referira a mim daquele jeito, com tantos elogios, que foram absolutamente sinceros da parte dele, o que era realmente o mais importante. E finalmente, sentados a uma mesa de café, pude ler o prefácio que já estava feito e que me deixou sem palavras.

Eu estava certa, a nossa conexão era perfeita. Agora não havia mais hipótese de não ter o prefácio de quem eu não queria. Ali estava ele, feito para mim, pela única pessoa que realmente me interessava. Se antes deste episódio já existia uma simpatia mútua, a partir desse dia a nossa amizade tornou-se em algo muito bonito. O Rui era uma pessoa extraordinária. Não tinha defeitos. Era um senhor. Por essa altura Alice Cruz, sua companheira, já tinha sido vítima do acidente que lhe tirou a vida. O Rui que eu conheci foi sempre uma pessoa extraordinária, em todos os aspetos, em todos os sentidos. A nossa amizade era mesmo muito bonita e sincera.

E com o prefácio comigo, feliz da vida, lá fui eu para as negociações da edição do meu livro em que a RTP estava interessada. Mas, uma vez mais, a minha querida colega, a senhora doutora, não estava de acordo. Continuava a dizer que não queria o Rui Romano. A questão é que àquela altura, Rui Romano já era “persona non grata”, coisa em que nem pensei, nem me interessava. Os jogos de uns e de outros não tinham que me afetar nem tão pouco me interessar. O meu livro era uma coisa, os problemas internos da RTP eram outra. Mas isso era o que eu pensava. Porque, na verdade, percebi que as coisas estavam todas misturadas. Misturadas e complicadas. É que, além do problema do prefácio, surgiu ainda mais uma questão. A senhora doutora agora achava que eu deveria contribuir com alguma coisa, ainda que muito pouco, propondo-me uma quantia perfeitamente irrisória, que não fazia o menor sentido. Se eu quisesse mesmo publicar, se fosse do meu interesse, eu daria muito mais do que ela me estava a pedir. A importância que ela propunha era tão ridícula, que concluí que o problema não podia ser esse. Além de que o interesse não era meu. E eu tinha deixado isso bem claro, tanto que levei tempo para decidir. Agora as coisas estavam a ser postas de forma que parecia que era eu que tinha pedido alguma coisa. Mas nunca! Jamais. Eu tinha sido chamada para aquilo. Não me tinha oferecido nem pedido nada a ninguém. Portanto, a “negociação” acabava ali, naquele momento e ponto final mesmo. Sem chance. Eu não queria mais, como nunca quis. E não houve livro para ninguém.

Estou arrependida disso? Nem um pouco. Ganhei um amigo muito especial, muito querido, por quem sempre nutri a mais profunda admiração e mais tarde o seu enorme carinho, bem como a sua atenção, que para mim foi o mais importante. Rui lamentou o sucedido e queria ser ele a publicar o livro, mas achei que não. Não queria misturar as coisas. Aí, não sei se fiz bem ou não. Porque, muito pouco tempo depois, uma estrela partia desta vida, provavelmente para um lugar bem melhor do que a terra, deixando para trás as confusões, as tretas e todas as porcarias por onde se embrenham os humanos, apenas porque não são capazes de enxergar uma luz maior e reconhecer o que é bom e o que é mau. É um caminho que se fecha e nos torna prisioneiros, sem a menor possibilidade de libertação. E assim, as coisas são como são. Mas ficou a eterna saudade de um encontro que deu um destaque especial à minha vida e que nunca esquecerei: Rui Romano. 


(2022)


Obrigada meu amigo 


Pela Verdade, 

pela amizade 


Pela postura correta da tua ingenuidade 


Pelo alerta 

contra o erro, contra o mal 


Pela composição da Suprema Felicidade.






Gostaria de partilhar os meus poemas com os muitos que li ao longo de toda a minha vida e que amei. Mas eles são tantos, tantos, que seria impossível eleger os melhores de entre os melhores. E já que não é possível fazê-lo, limito-me a destacar o que ao mesmo tempo serve de apresentação de mim mesma. Não sei se é poesia, como não sei se os meus o são. São de certo “arte” e qualquer forma de arte é válida, por onde quer que ela passe, qualquer que seja a sua origem, nacionalidade, forma ou conteúdo. Sei que me emocionaram e me maravilharam pela subtileza da linguagem holográfica quase imperceptível, de toque tão indelével. Eles têm tudo o que é preciso para dar forma à vida: leveza, espaço, eternidade, amor, verdade.

Tudo isto, numa conjugação generosamente maliciosa, onde a pureza se decompõe e se perde em habilidosa ingenuidade, num espaço intemporal.


*** *** ***



Oh, I am lovely.
I know I am lovely.
But I am so soft and
so new. And the world
is so old and the
world is so hard,
and the sea is so
deep and so blue.
But soon the clock
ticks and soon I am
older, and what you
Are telling is true.
Oh, I am lovely.
I know I am lovely.
And all of my
loveliness soon is
for you.






She laughs and cries and teases and toys
and even thinks thoughts.
What can a man do but paint her and paint her
and paint her for ever?


Sam Haskins (Livro de fotografia - 4. The apprentice)
***



Havia uma jovem corajosa
Que viajava mais depressa do que a luz.
Um dia ela partiu
Pelo caminho destinado
E só regressou na noite anterior.




“Breve História do Tempo” (Stephen Hawking)



*** *** ***



A poesia

traduz o limiar do meu lado sensível,
do meu ser o mais fragilizado,
do meu canto o mais obscuro.

É o meu terreno totalmente permeável,
onde a emoção, no auge da sua fertilidade,
flui e desliza, fácil, fácil...

Porque, através da poesia
se desenrola e desenvolve
todo um complexo processo giratório,
de descoberta e aceitação,
à volta do qual, nem sempre sei quem sou.

Porque tudo tem a ver comigo
e ao mesmo tempo, nada.

É quando me perco por completo
nos parâmetros duma falsa realidade,
num desfazamento entre o tempo e a distância,
onde fico irremediavelmente perdida,
inutilmente esquecida.

É quando me abandono e me ausento
num espaço que, não dando lugar
a uma nobre e real existência,
não deixa por isso de ser só e tanto meu,
quando me canso de ser sempre,
sempre, eu.


17.05.93




O Caos

 

O caos soa distante

Devagar… vai-se aproximando

Contente, vem cantando

Vem chegando

Devagar, devagarinho,

Aos poucos

Encontra o caminho

Canta

Dança

E assim avança

Vai assustando

E barafustando

Matando a alegria

E tudo o que ela trazia.

Virou o caminho de pernas para o ar

Depois do mal feito pôs-se a andar.

 

(28.04.2022)






Esperança 

 


Rio que corre no leito

Lágrimas que flagram no peito

De um tempo que avança

Sem muita esperança

Saudades que o tempo carrega

Barca que sem rumo navega

Céu cheio de azul que não se vê

Livro onde sem luz nada se lê

Poeira varrida pelo vento

Vida que se perde sem alento

Caminho que se abre ou que se fecha

No meio de uma balada de tormento

Agora e sempre uma esperança

Ou apenas e somente uma lembrança.


 (25.03.2022)







O sol nascente
O sol poente
                E eu espero
                               Espero
E tudo recomeça novamente
                A dor mais longa
                O inferno ardente
Os dias são tão verdes
E o verão tão quente
Sonhar
Recordar
                Acorrentar
O jardim da infância não morreu
O jardim da infância ainda é meu.


(6/8/2018)






A Liberdade não é uma conquista, nem um desafio, nem um passatempo.

A Liberdade é um Dom.


(Maio/2001)





(Ligação ao Divino)


Eu não estou só.
Só, eu não existo.
Faço parte do todo, por isso nunca estou só.
Eu não posso ter medo de estar só. Eu não posso ter medo da solidão.
A consciência da solidão é fruto da imaginação fora de contexto. Todavia, o confronto com a solidão é inevitável, nem que seja para o reconhecimento dos seus parâmetros de relatividade.
A existência é infinita, estendendo-se pela eternidade. Jamais se extingue. Portanto, jamais alguém está só.

E quando tudo acabar,

sob pretexto de um sentimento e nunca de um facto, tenho-me a mim. Não posso esquecer que sou parte integrante de um todo. Nada é singular, único, exclusivo. Seria a negação da existência. Existe o que existe. Existe tudo e eu uma parte de tudo. Existo na eternidade com a mesma potencialidade que qualquer outro ser.

E quando tudo acabar,
ainda que só como produto duma mera fantasia, há sempre, se não há, houve e isso já basta para dar autenticidade à tese da negação da solidão, um pai, um filho, um irmão, um afilhado, um sogro, avós, bisavós… que podem até não estar visíveis, mas coexistem, sendo parte da eternidade, com a mesma afirmação que eu. É impossível negar, por mais que eu queira. Negar é destruir a existência do eu, a qual é indestrutível. Portanto, eu existo, como todos os que existem antes e depois de mim. E a cadeia da existência não finda nunca. Existe sempre, algures no meu caminho, por mais distante que pareça, um mestre, um amigo, um companheiro, um vizinho, um discípulo, um livro, uma árvore, uma flor, uma música, uma lua, um sol, um pássaro… que eu não posso ignorar, porque precisa da minha existência tanto quanto eu da dele. Eu existo e não estou só.


E quando tudo acabar
e eu ainda me sentir só e não conseguir estar do lado do sol, da música, do pássaro… então eu tenho-te a Ti no meu pensamento e no meu coração, mesmo sem saber quem és, donde vens, para onde vais… paisagem, desenho, sonho, sorriso, amor, lágrima, vento, aroma, fantasia… como a luz das estrelas, sei que existes e eu nunca estou só.


Junho/2005
***

Todo o homem que procura em tudo, por vaidade,
a sofisticação da intelectualidade,


esquece

ou simplesmente desconhece

que o segredo da beleza e da verdade
são cúmplices da mais pura simplicidade.


***


***


Nasci no ano de OGUM.
Sou filha de Xangô
sou filha de Iansã.
Todos os dias o recordo
ao despertar da manhã.
A minha instabilidade
é-me muito conveniente
e a minha vulnerabilidade
tem fronteiras bem marcadas.
Hoje, pouso aqui... amanhã(?)...
Sou filha da liberdade,
gosto da chuva
do vento, da “tempestade”.
Preciso muito de calor
mas, um raio de sol me basta
para mergulhar
ainda que de longe,
exaustivamente,
no mistério de um olhar,
que me seduz e me atrai,
mais que muito,
estranhamente...


01.89
***


Eu entrei numa casa grande,
sem paredes e sem tecto.
Mas então não era uma casa.
Talvez um sítio, qualquer lugar...
E estava cheia de tanto vazio,
tão grande, se tornou um pesadelo.
Mesmo assim, tive medo de perdê-lo…


***
***
A música passeava despercebida.
Ouviam-se as notas, uma aqui, outra ali,
como a chuva que caía
aos olhos de quem a via
gota aqui, gota ali…
gente que subia e descia
que tudo escutava mas nada ouvia,
nos mosaicos frios, de cores neutras,
cortando o silêncio ao som da vida.
Porque não sou igual aos outros (?)
nem sequer igual a mim mesma,
nunca sei quem sou,
nem na hora da chegada, nem na hora da partida.
Conformista por eleição,
traiçoeira por convicção,
sou sempre o nada à hora certa,
sobretudo quando a tristeza aperta.
Sonho que sou quem não sou.
Tenho o abismo sempre à espreita
e ao lado a solidão.
Onde estão os que não estão?
E sempre esta vontade de chorar
por mágoas que não sei curar.
Olho os outros, estão sempre a rir,
tenho vergonha até de existir,
sempre à espera do que hei-de ser,
de um diferente amanhecer,
transcendente
intransigente
quando é tudo tão vulgar, tudo tão normal,
apenas eu, a tudo desigual.

Ago/99





***


Uma estrela caiu 
Olhei-a 
Ela sorriu 
  e roupas leves, transparentes, despiu 

Eu corri 
ela correu 
  a distância que o tempo não venceu 

Eu brinquei 
ela brincou 
  fantasias que nunca dispensou 

E cansada se sentou 
me pedindo que dançasse 
e meus desejos lhe segredasse, 
ela os faria brilhar 
antes do meu despertar 

E ao som da brisa a passar 
do vento ao longe a cantar 
nas águas quentes do mar, 
envolvida na luz do luar, 
pelo tempo dentro eu entrei 
  procurando 
e nunca mais eu parei 
  sonhando 
  dançando
  sonhando 


Abril/2002

"Adorarás o Senhor teu Deus
e amá-lo-ás sobre todas as coisas”


está escrito...

maktub

nas laranjeiras carregadas de flor
para os amantes que brindam o amor,
no sol que brilha sobre o mar,
que se espelha na limpidez do teu olhar

maktub

na solidão que agoniada foi embora
esgueirando-se no correr de pouca água
num campo deserto onde chora a sua mágoa
na espera de outro dia, outro tempo, outra hora


O malmequer é branco e suave
e como o navegar tranquilo de uma nave
as suas pétalas flutuam devagar
ao sabor do tempo, sem nunca parar

maktub


14.02.98
“O gosto da água, o som da água
a vista da água”…
(“OS MAIAS” de Eça de Queirós)


Volúptia e movimento
ora agitado ora lento,
ora quente ora frio
terna chama de pavio
ao esmorecer da noitinha
que depressa se avizinha.
... Àmanhã a “história” é outra,
o dia já não é este...
foi no tempo que partiu
embalado pelo rio,
bem debaixo da noitinha.
Sempre andando,
abriu caminho
entre arbustos de azevinho
e suave deslizou
banhando-se na beirinha
da ribeira que o levou
pelo acalmar da tardinha.
E suspirando,
que por amor se encantou,
no lazer se espreguiçou
estonteante e esvoaçando.

No silêncio penetrando
ía feliz murmurando...

“o gosto da água, o som da água
a vista da água”.

Jan.97


***
Allâh-haffez,
Xucria…


Seria noite, seria dia,
Alguma vez se saberia?
Seria tarde, seria manhã,

Num vendaval de sabedoria
entre o silêncio das veredas
ventava lá do alto a bela lua
adornada de púrpura de sedas
mostrando a face lívida de nua.

E em tudo se via, ouvia, movia,
juntando pedaços de restos de vidas.
Uns falavam, outros escutavam,
outros o sonho acalentavam.

Quem sabe se partiriam?
Quem sabe se voltariam?

Só uma coisa eu sabia
E dentro de mim eu ouvia

Allâh-haffez,
Xucria…

22.08.99


***

***

no rebentar das marés
no trovoar das galés
nos lugares turbilhantes
de mil seres cohabitantes

onde há lendas por contar
caminhos para cruzar
uma jornada a cumprir
a meta por descobrir

nesse mundo genial
que faz o ser ideal
e torna a alma imortal

onde as areias de açúcar
se fundem num doce olhar
e mãos de anjo, saborosas,
têm o perfume das rosas...

e deixa-se o tempo correr
sem medo do acontecer
e tudo é tão leve e tão solto
na densidade de um mar revolto…

orgia de muito tormento
sorrindo num doce lamento.

Fev.97


***

29/04/2009

O tempo

             e o vento

   

- Quando partires na tua montada

galopando      rumo ao vento

sem parar     na curva da estrada

dividindo ao meio   o tempo

                                    um lado é Teu

                            o outro é meu

  

- Quando desceres pela encosta florida

num campo fresco cheirando a jasmim

abranda a fúria  da tua corrida

respira fundo e entra              é o meu jardim 

                            metade é Meu

                            metade é teu 

 

         - Quando partires rumo ao vento

            dividindo ao meio o        tempo

  

                   um lado será sempre teu

                   o outro   sempre  e só    meu.


***
Sedução


Sobre o verde dos campos arvorados
senti uns passos lentos e suaves
e um doce aroma disperso, a velejar
imperceptível, no deslizar das aves.

Cantei meu hino afogado em liberdade,
chamei o tempo no vagar do seu passar,
despi as vestes transparentes do luar,
deixei a vida, entre o sonho e a veleidade.

Segui um rasto emaranhado de emoções...

Mergulhei num mar de frescura e sensação


Senti pulsando, o fulgor da sedução...

Maio/96


***

Todas as rosas murcham

Quando sopra um vento
Quando o calor aperta
Quando chega o tempo
E o perfume se liberta

Todas as rosas murcham

As que são e as que não são
Quebradas por uma mão
Quantas vezes sem uma razão
Por isto ou por aquilo
Caiem no chão
Por aqui ou por ali
E vão...
Esmagadas pela estação

ou não...

Jul/04
***
***


Quando nos campos cobertos de verdura
o sol brilhar com toda a sua ternura
na terra envolta em verdes tons de era,
sim... voltarei a sonhar. É outra vez Primavera!
Em seu cheiroso regaço cairão rosas de Maio
pequenas, atrevidas e perfumadas
cobrindo os portões de um passado decadente
numa extensa memória de largas passadas.
Dali, nunca sei se entro ou saio.
Vejo-me sempre num espelho imaginário,
no grito rouco duma noite fustigada,
perfeito perfil do sonhador hereditário.
Uma lua que já espreita antecipada,
um sol poente que se sente solitário.
Na onda tardia da maré agoniada
vem chegando devagar a madrugada fulgente.
Qu’importa!
Se tudo vai, se tudo volta,
se há sempre uma porta
que nos leva e traz de volta.
Primavera a sorrir
rosas de Maio por abrir.

01.08.97


***

As Nuvens do Infinito...


embaladas na distância
por um vento a flutuar,
portadoras da arrogância,
num vendaval de arrepiar,
levam o jeito da importância
e o sonho da ignorância

são desejos a brilhar
das lágrimas no teu olhar,
cantam a tristeza e a saudade
ao abrigo da solenidade

as nuvens do infinito
perdem-se na memória
do tempo sem calendário
navegam sem peso, sem conteúdo,
“ presas” do imaginário.

Agosto/96

***
O Vale dos Anjos



Perdido nos escombros do além,
debruçado sobre as muralhas de ninguém,
coberto de nuvens de suaves recortes
sobre a orla do vale, de sentimentos fortes,
em lágrimas desvanecidas de tantas vidas,
soa um tilintar de pedras coloridas
num sublime sofrimento de dor intensa,
a morte e a vida numa alegria imensa,
exalam um suspiro perfumado
que a brisa leva em seu cuidado,
sem amargura, sem ódio, sem mágoa,
um lago azul, transparente como a água

no vale dos anjos

num sopro regenerado
devoto e encantado

reina a nobreza
governa a subtileza.

(À memória de David Mourão Ferreira)


17.06.1996


***

Velas vermelhas



Velas vermelhas
simplesmente esplendorosas
tão esguias e vaidosas
de lume forte e chama quente

filhas do sol
refúgio do Inverno
rigoroso e insolente

de lágrimas doces e ofegantes
que correm radiantes
por castiçais de prata fina
ou em vulgar latão dourado

perdidas em salões elegantes
lembram mil e uma noites
de um sonho desejado
de um desejo partilhado

cheias de luz, arrogantes,
de um brilho persistente,
sobre a pedra da lareira
esplendorosas, simplesmente...

01.01.95


***
A dança da lua 


Eu   sou dona da lua 
                        à noite, 
ela espreita pela janela 
          balança-se,
e eu danço com ela. 

Falo-lhe baixinho e com ternura 
dos muitos sonhos que o vento me leva 
presos nas nuvens que passam correndo 
dispersos numa constante procura 

da noite que se banha ao luar 
da saudade que se passeia pelo tempo 
da liberdade que anda à solta a vadiar 
e que ninguém consegue fazer parar. 

Eu   sou dona da lua 
                        à noite, 
ela vem ver-me à janela 
         encosta-se, 
e eu adormeço com ela. 



(Dia Mundial da Liberdade ) 23.01.1995


***

***


No mar…
vi os teus olhos cheios de brilho
que mergulhavam insaciáveis
em pensamentos incontroláveis

vinham na vaga que o mar trazia
a rebentar
na onda da maresia

senti as tuas mãos
sufocando a minha alma
mas eram rosas que apertavam
eram pétalas que se quebravam
e suaves essências se libertavam
e o meu sonho alimentavam

não sei que tempo era
mas era uma outra dimensão
aquela onde sempre me desconheço
onde nunca sou quem pareço

onde nem mesmo sei se existo
onde sempre, sempre, insisto.

Abr/1995


***
***

Flores… flores…
flores que encontrei no mar
flores pr’a fazer um colar
para deitar
no regaço de yemanjá.
Flores finas e coloridas
para enxugar
as lágrimas salgadas
da sua lívida e pálida face.
Flores na terra, flores no mar,
flores divinas para enfeitar
o rasto do deslizar
do branco do seu fino manto,
de pétalas doces e suaves,
toque macio e leve
murmuram o sabor dos aromas
penetrantes
libertam sonhos de essências
inebriantes
descobrem a história de um novo
amor
trazem a novidade de um outro
sabor...
flores gostosas que a terra dá
flores frescas para yemanjá.

02.08.95
“Quand-il est mort le poète...”

(À memória de Irene Urbano)


Louca
cabelo encrespado
de louro amassado
vestida de trapos
sorriso esvaído
duas esmeraldas no rosto ferido
diamantes esquecidos num olhar perdido...
tão louca,
senhora da alegria
a dona da fantasia,
flor rebelde, tresmalhada,
da liberdade vazia,
sempre só na encruzilhada.
Ser “gente” ou ser vadia,
estrela da noite mais fria
viver... louca... tanto faz...
como é doce e breve a paz
da soberana harmonia.
Uma vida, uma sangria,
de alma nua, leve e rouca,
a Rainha da poesia

louca
tão eternamente louca...

Fev.94
***


Palavras
palavras mágicas com tanta importância
pairando no ar ao som de uma dança,
investidas tão alto, com tanta arrogância
mas sempre
sempre pesadas na mesma balança.
Mas o que importa não é o falar,
é antes, aquilo que temos a nos dar,
que vem do fundo de dentro de nós,
da profundidade das emoções do nosso mar,
que só ouvimos num encontro a sós,
venham por ódio, por raiva ou por amor,
sem qualquer pressa nem por favor,
sem grande urgência, nem hora marcada.
Palavras, palavras apenas
num qualquer rosto espelhadas
no pensamento, no olhar, em linha cruzada,
palavras, sempre as palavras
sem rumo, por aí espalhadas
e quando recolhidas pela memória
quanto se enfeitam de glória!
Palavras, palavras apenas,
pobres coitadas,
não sabem nada
estão sempre enganadas.

22.02.94

***
O Mistério


É o segredo por descobrir
e as palavras por dizer

a verdade por encobrir
algo por acontecer

é a tua voz por ouvir
com tanta coisa escondida,
o teu sorriso dançante
a piada divertida

um malmequer que desfolha
sensível e angustiante

uma lágrima que molha
uma súplica que chora

um coração que implora
que o “mistério” nunca acabe

porque tudo e nada sabe.

Mar/94
As eternas areias do deserto

Finas, lívidas, amontoadas
de cores nuas, claras, desmaiadas,
nelas se movem sombras atordoadas
numa balada de silêncio insondável
onde se cruzam no rasto dos caminhos
o passado, o presente, o futuro,
embrenhadas no rolar da fúria das tempestades
pelo portentoso rodopiar dos ventos
soprando com quanta força pode a natureza
correndo um desafio tortuoso
desmembrando sonhos numa tola e vã certeza
e o céu não chora
não chora nunca...
um rosto pálido, transfigurado
espírito débil, enfraquecido
envolto em cega luz, jaz, perdido
onde vibram miragens loucas
que turvam a fonte da fantasia
transpirando tudo o que é poeira
sempre sob o sol do meio-dia,
e resistem ao tempo
aos ventos flutuantes
às correntes variantes
que avançam sem parar
sem poderem descansar
carregando o peso de toda a sua eternidade
e o céu, por mais que morra de vontade
não chora
não chora nunca...
mas são belas
belas e eternas
as eternas areias do deserto.

Maio/94
Naquele lugar


Ali, por trás dos montes
dos vales, das colinas verdejantes
das vagas ondulantes
das cores lentas do sol posto
do arvoredo, das cascatas, das mil fontes
saiem quantos contos
quanta magia
quantos sonhos
que um dia
até já foram importantes.

Ali, naquele lugar distante
tão fora do poder da visão humana
nasce, ainda assim e, muito embora,
a cada instante,
a cada passo,
a cada hora,
uma certa voz presa, indistinta,
vem dalí, daquele lugar
tão longe que não sei onde fica,
tão perto que tantas vezes me assusta

Vislumbro um mar, ora tranquilo
ora em sulcos agitados
de sussurros delirantes
ora tão fortes, ora apagados
filhos do tempo,
dos momentos agonizantes.

E cobrem um rosto de mágoa e de saudade
e ferem o coração, que bate forte, com fervor
e umas mãos que tanto tremem, sem calor.
Ali, quando penso que não sei nada

já sei tudo

é o vazio

o silêncio o sangue frio

só os plátanos se abanam, se refrescam
por entre toda e tanta solidão
sem rumo, sem direcção,
e embalam seus etéreos ramos ao luar
sem qualquer pressa,
com tanto vagar

ali, naquele lugar.

14.09.94
Era uma vez...

O Sonhador


O Sonhador sonhava
sonhava acordado, sonhava dormindo,
ele sempre sonhava
e o seu pensamento
fluía, fluía
como as águas mansas do rio
corria, corria
sem nunca perder o fio
à teia que ele próprio tecia,
e assim o seu sonho seguia.
Aparentemente, ninguém o via
mas ele e ele só, bem o sabia,
como era bom poder sonhar...

“sonhar” - dizia -
é por aí divagar,
deixar a vida acontecer,
perder-se na essência do próprio ser,
na brancura das nuvens penetrar
caminhar sobre o verde sem pisar,

sentir o vento a fugir
olhar o sol a sorrir

e a borboleta dourada
esvoaçando atordoada...
era tão linda e delicada
tão fugidia e alvoraçada!

e os olhos das crianças louras
onde está escrito o amor...

e os olhos das crianças negras
onde se esconde uma dor!

e o sonhador não entendia
esse seu sonho realidade
um pesadelo - “ansiedade”

mas o sonhador sabia
que o mundo sempre a girar
num dia tudo mudava


e nesse dia
com o relógio do tempo a tocar
era chegado o momento de acordar.

1.10.94

***
A Despedida


“Adeus” não disse, mas pensou...
era a hora da despedida
e como fora longa a vida!
longa demais para tão pouco ser vivida,
tão longa,
como quanto azul há em todo o céu

... depois, na sua expressão esvaída
cansada e descolorida,
nem tudo se escondia,
apesar de guarnecida
por um fino e puro véu

não disse nada
para que ninguém nunca visse
a sua alma dilacerada,
não disse nada
porque nada ficara por dizer
e porque tudo assim tinha que ser

do pouco que teve nada levou,
de tudo o que tinha nada ficou

chorou...
lágrimas de cristal e de prata, salteadas,
que silenciosamente derramou
sobre as suas flores mais delicadas,

e por sua própria mão
em seu suave e terno coração

com tanto amor

pela vida fora plantou
para a eternidade consigo guardou.

20.10.94
A Harpa

Divinamente bela e majestosa,
subtil, sensual e calorosa,
ingénua e inocente,
o seu toque, suave e imponente,
vem de um tempo
que eu não sei qual é...
parece sonho de criança
que sonha, sonha e não se cansa.
Queria ser um anjo, um querubim,
chegar bem perto, ajoelhar,
fechar os olhos e tocar, tocar,
esse som delicioso
num gesto terno de embalar,
é uma verdadeira festa
e sempre a chamar por mim!...
São mãozinhas pequeninas,
tocam, tocam, sem ter fim,
em fios de ouro em marfim,
vestes brancas, muito finas,
entre nuvens de algodão
por toda a noite ao serão,
sempre a chamar por mim,
tocam, tocam, sem ter fim...

Natal/94 (Para os dois aninhos do Afonso)
“Olhai os lírios do campo...
olhai as aves dos céus,
não semeiam e não colhem
e não lhes falta o sustento”

(Novo Testamento)


Sublimação


Diz-se que a poesia é um “dom”.
Toda a arte é um dom
se dela jorra o amor,
se dela brota a semente
do amor p’ra quanta gente.
Amor sonhado, amor amado,
amor amigo, amor inventado.

É por amor e com amor
que se escreve, que se pinta,
que se canta ou se encanta.
Que se vive e se respira.
É por amor que sofremos
e tantas vezes dizemos
por um “sim” ou por um “não”,
algo que se cala na alma,
cravado no coração.

É por amor que clamamos,
choramos e resistimos,
brindamos, compartilhamos,
as horas boas, as horas más,
o céu azul, o inferno,
o tempo que leva e traz,
o calor, o frio d’Inverno.
E por amor decidimos
se ir, se simplesmente ficar.

É por amor que odiamos
aqueles que mais amamos
e no silêncio sufocamos
palavras, gestos e sentimentos,
esperando melhores momentos,
num nó tão bem apertado
que cabe dentro do peito
e com amor transformamos
numa feliz e secreta amizade,
“que mal se ouve, que mal se sente” ...

que já pesa na saudade,

sem ter culpa e sem temor
sem dúvida com muito Amor.

1994
Açúcar no teu olhar

Um raio morno de sol
vem chegando devagar
atravessando o Inverno
num sorriso a desmaiar
sopra forte um vento frio
e numa dança em rodopio
leva as folhas pelo ar
folhas secas do Outono
perdidas no chão
caídas no sono...
num lugar tão esquecido
sem tempo nem convicção
num horizonte perdido
na paisagem adormecida
duma vida desconhecida...
um arco-íris brilhando
num céu de crianças, cantando...
brinquedo p’ra contemplar
numa noite sem luar
neve fria, neve doce,
açúcar no teu olhar.

1994
Risos


Distantes esbatidos
graves sonoros
ecológicos incolores
diabólicos maleáveis
abafados distraídos
alegres saudáveis

Eu rio do meu riso incontrolado
louco, preso e estrangulado
e ouço o eco repercutir-se no vazio
num espaço desequilibrado
perdendo-se e dispersando-se
à sombra duma meia verdade
ao encontro da desigualdade.

São dois pesos equilibrando-se,
são caminhos para ir e vir,

sem medo e sem saudade
prisioneira da liberdade.

1993


***



Estar contigo


Esse teu lugar perdido
Esse teu estar escondido
Esse teu olhar varrido
Meu vazio preenchido...
Num chamado insinuante
A vontade devassante
No sereno agitado
de sabor tão variado...
É um respirar bem fundo
Um pensar de veraneio
Um sonhar bem colorido
Um bem estar mui merecido...
E eu só quero estar contigo

Ago/2003
***

Maré Alta, maré cheia
teu amor achei n’areia

transportado num só tempo
assoprado por um vento

vinha feito de sorriso
e era quente como um sol

sabia a mar, sabia a sal
era verde, algas marinhas
era azul celestial

era doce, terno e brando
meu coração chorou, sangrando
pétalas vermelhas, desfeitas ao luar
banhado na bruma, levado pelo mar
Maré alta, maré cheia
muito longe foi parar...

25.07.93


Lágrimas ,
lágrimas


Lágrimas cansadas, carregadas de ansiedade
que me lançam no espectro dum imenso abismo
na chama quente duma fúria impetuosa
filhas de um sonho, duma vil realidade,

lágrimas profanas
lágrimas ciganas

Lágrimas perdidas do vazio inconsciente,
lágrimas sofridas duma ilusão impiedosa,
lágrimas de fogo que sabem a verdade,

cheias de tão conturbada saudade
que brilham ao sol sem nunca secar,
que a chuva com carinho às vezes vem lavar.

Lágrimas que o tempo apaga vagamente,
sopradas pelo vento, levadas na corrente,

Lágrimas ,

Lágrimas…

Abr/93
Luar de Agosto


brilhante, cristalino e luminoso

traz de volta o meu amor
lindo, meigo e carinhoso

traz de volta o meu amor ...

Um dia foi-se embora,
prometia que voltava, não voltou.
Deixou-me num sono quase eterno,
tão longo como uma noite de Inverno,
presa na paixão me amedrontou
entregue à solidão me abandonou.

Luar de Agosto,

lindo, meigo e carinhoso,
brilhante, cristalino e luminoso

traz de volta o meu amor,
traz de volta o meu amor ...

05.08.93
A Viagem


É uma nuvem que passa
um ar fresco que me enlaça
um céu puro e colorido
transparente como um vidro
é uma janela florida
uma cortina corrida
uma porta sempre aberta
um desejo sempre alerta
uma sensação de nada
a tentativa falhada
é o ser que eu não sei ser
a viagem por fazer.

26.08.93
No silêncio

escuto as vozes dos que nunca falam
o pensamento dos que sempre se calam
o rosto vazio da inexistência
fragmentos perdidos de uma outra consciência

no silêncio

vejo os teus olhos intensos brilhando
a manhã fresca que desperta pulsando
sinto o cheiro de todas as flores
num breve sonho de múltiplas cores

e o sabor duma paixão desconhecida
feita de vento de sol de vida

29.01.92
O pó, a poeira...


A nostalgia na fogueira
a vida, perdida, varrida,
no caminho esvoaçando
à beira duma palmeira

a solidão gritando

agressiva, arquejando
e o sonho batendo forte
embrenhado na ramagem
solto ao vento pela aragem

na sombra duma ombreira

feito pó, feito poeira...

22.03.92
Na outra margem


Na clareira da saudade
no desvio liberdade
existe só uma passagem
que vai dar à outra margem.
Aí a lua não tem rosto
é apenas uma miragem
um pensamento uma mensagem
um devaneio sorridente
uma sombra um lugar quente
um desejo uma semente

no perfume das águas soltas
nesse imenso mar eterno

onde o tempo já passou
onde o sonho de gastou.

1991


***

Meu doce, meu amor


O tempo quase parou
e um sol fervendo entrou
quando o teu olhar quente me envolveu
e sobre as areias mornas me estendeu

de desejos impuros me sorriu
com pétalas de mel me cobriu

ao luar comigo se banhou
com seus lábios frescos me beijou

e num campo tranquilo adormeceu
debaixo das cerejeiras sempre em flor

meu doce, meu amor.

28.04.91
O Canto do Rouxinol


Há um rouxinol que canta sem parar
veloz na madrugada do tempo
na linha onde se apaga o caminhar
onde se tocam as luas a estrelar
e se soltam no vento
loucuras transparentes
onde sibila a nostalgia a segredar
algodão branco revestido de nudez
num desenho de côr inocente
brilhando num feixe de luz intensa
num projecto de viva lucidez
chuva alva de claridade imensa
canta leve num suave despertar
faz o trigo crescer sob o orvalho
e as uvas esconder no nevoeiro
traz o sol o sonho o deslizar
a mágica subtil da música florida
a nota final duma papoila dolorida,

um copo de água fria açucarada
uma rosa branca e fresca perfumada.

29.01.90